Imperativo Categórico e Fato da Razão Kantiano
Edezio Muniz de Oliveira
Mestrando em Filosofia
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Resumo: A filosofia moral kantiana está fundamentada em um agir direcionado por uma boa vontade para a prática de um bem regido por um Imperativo Categórico, mas, que tenha origem principalmente na liberdade do indivíduo, pois esse agir não pode decorrer de uma ordem externa que disponha sobre o procedimento das pessoas em suas ações. De tal modo, este artigo pretende elucidar o entendimento do Imperativo Categórico juntamente com o conceito de moral, a partir de conceitos prévios, de maneira a facilitar o entendimento do que seria esse Imperativo. Inicialmente será necessária a visitação de algumas considerações conceituais, como a boa vontade; a liberdade; fenômeno e númenos; autonomia e heteronomia.A partir do Imperativo Categórico iremos em direção ao estudo da moral, como um Fato da Razão, na Crítica da Razão Prática, de forma a elucidar suas evidências. Como é sabido, Kant pretendeu, em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, expor as bases para a sua lei moral, bem como fundamentá-la. Nas duas primeiras seções da Fundamentação ele estabelece as regras para um agir moral a partir do Imperativo Categórico. Na terceira seção, o citado filósofo busca uma forma de fundamentar e deduzir essa lei moral, o que foi mostrado, para alguns comentadores, como impossível, o que fez com que, mais tarde, o próprio Kant entendesse essa dedução como desnecessária. Assim, devido a essa dificuldade enfrentada na Fundamentação, Kant estabelece, na Crítica da Razão Prática, a ideia de Fato da Razão para demonstrar aquilo que não obteve sucesso na Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Palavras Chaves: Moralidade; Fato da Razão; Razão Prática; Lei Moral.
Abstract: Kantian moral philosophy is based on an action directed by a good will for the practice of a property ruled by a Categorical Imperative, but that originates mainly in the freedom of the individual, since this action can not be derived from an external order that disposes on The procedure of people in their actions. Thus, this article intends to elucidate the understanding of the Categorical Imperative together with the concept of morality, from previous concepts, in order to facilitate the understanding of what this Imperative would be. Initially, it will be necessary to visit some conceptual considerations, such as goodwill; the Liberty; Phenomenon and noumen; Autonomy and heteronomy. From the Categorical Imperative we will move towards the study of morality, as a Fact of Reason, in the Critique of Practical Reason, in order to elucidate its evidences. As is well known, Kant intended, in his Grounding of the Metaphysics of Customs, to lay the foundations for his moral law, as well as to ground it. In the first two sections of the Rationale he establishes the rules for a moral action from the Categorical Imperative. In the third section, the aforementioned philosopher seeks a way of substantiating and deducing this moral law, which was shown to some commentators as impossible, which later made Kant himself understand this deduction as unnecessary. Thus, because of this difficulty in the Ground, Kant establishes, in the Critique of Practical Reason, the idea of Reason's Fact to demonstrate what has not succeeded in the Grounding of the Metaphysics of Customs.
Keywords: Morality; Fact of Reason; Practical Reason; Moral Law.
Revista Outras Palavras, volume 13, número 1, ano 2017, p.35
1. Boa Vontade como Liberdade
A boa vontade não é somente boa pelos benefícios que possam ser obtidos a partir dela, ela é boa por si mesma, sem qualquer condição. Dessa forma, não são os resultados que interessam, nem os motivos da ação. Seguindo essas premissas, boa vontade é fazer o melhor de si, sem ser movidos por interesses. Qualidades de uma pessoa não significam comportamento digno, pois uma mesma qualidade tanto pode gerar benefícios quanto malefícios. Tomando-se a perspicácia de uma pessoa como exemplo, essa qualidade pode servir para o bem ou o mal, a depender apenas de como agirá essa pessoa dotada de inteligência, pois o seu comportamento aguçado pode ter intenções maléficas se não for realizado com uma vontade essencialmente boa. A boa vontade funciona como um atestado de qualidade que une-se à pessoa para imprimir-lhe uma qualidade ainda maior e melhor.
A ação que é compatível coma a autonomia da vontade é lícita; a que não se afina com ela é ilícita. A vontade cujas máximas se põem necessariamente de acordo com as leis da autonomia é uma vontade santa, absolutamente boa. (Kant, 2009, p. 283).
Revista Outras Palavras, volume 13, número 1, ano 2017, p.36
Ou seja, a autonomia é o elemento chave para se produzir a vontade. Diz-se que a autonomia significa uma auto legislação a determinar as regras de comportamento.
A filosofia prática de Kant explica a autonomia como uma determinação da vontade. Kant procurou desenvolver uma filosofia moral fundamentada num ?princípio autônomo? de auto legislação. A oposição entre princípios heterônomos e autônomos persiste em toda a filosofia moral de Kant. Em FMC, uma vontade autônoma concede a si a sua própria lei e é distinguida de uma vontade heterônoma cuja lei é dada pelo objeto ?por causa de sua relação com a vontade?. (Caygill, p. 43)
Nos princípios heterônomos, a pessoa age de acordo com um objetivo e não por uma vontade racional a priori e livre de qualquer interesse, como nos princípios autônomos. Esse comportamento heterônomo é definido por Kant como uma ?máxima?, que, conforme Kant, ?é o princípio subjetivo do querer; o princípio objetivo ( i.e. aquilo que também serviria subjetivamente de princípio prático para todos os seres racionais se a razão tivesse pleno poder sobre a faculdade apetitiva) é a lei prática?. ( FMC, AK 401). Ou seja, é uma simples regra de conduta, que pode ter, ou não, um conteúdo moral.
Os princípios heterônomos, por serem externos, são condicionados, que nas palavras de Kant seriam os Imperativos Hipotéticos, em que a ação do indivíduo visa um estado futuro, geralmente de satisfação. Ainda, em relação à liberdade, Kant afirma que esta não deve ser guiada pelos desejos ou inclinações, e sim pela vontade racional e livre de qualquer influência externa, ou seja, independente da experiência o que torna a liberdade pertencente não ao mundo sensível dos fenômenos e sim ao mundo da coisa em si, noumenos. Ou seja, percebe-se, de início, que esta liberdade, por não ser dependente de fatores externos, torna a vontade boa, também, numênica e não fenomênica por não depender das inclinações e desejos. Um imperativo é qualquer princípio através do qual um agente racional obriga-se a agir com base em fundamentos objetivos ou razões. (Wood, p. 166).
Assim, no conceito de boa vontade estão implícitos os conceitos de fenômenoe noumenos, de onde Kant retira o conceito de liberdade que pode gerar, por si, uma série de eventos, inclusive uma ação decorrente de uma boa vontade, conforme explicação da Terceira Antinomia em que Kant afirma que ?A causalidade da natureza não é a única da qual possam ser derivados todos os fenômenos do mundo. É ainda necessário admitir uma causalidade livre para a explicação destes fenômenos?. Essa causalidade livre da tese da terceira antinomia mostra que não pode haver apenas uma causalidade natural, dependente de condições anteriores, tornando-se forçoso admitir outras causalidades pois, caso contrário, o ser racional não poderia dar início a uma série de eventos por meio de sua vontade livre de qualquer desejo externo. Ou seja, é preciso admitir uma liberdade espontânea como capaz de gerar uma sucessão de outros efeitos que, por sua vez, também seriam tidas como causas, pois ?O efeito teria sempre existido, bem como a causalidade da causa. (Kant, 2014, § 53). Como afirma Höffe, ?...a terceira antinomia refere-se à oposição entre liberdade e determinação plena e é, por isso, decisiva para a fundamentação da ética? (Höffe, 2005, p.153). Logo, não fosse possível uma causa sem causa, ou incausada como diz Kant, o ser racional sempre agiria de acordo com outras causas, como as inclinações ou os desejos. Portanto, aos seres racionais é dada a possibilidade de agir sem uma causa.
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A ideia de liberdade tem lugar apenas na relação do intelectual, enquanto causa, ao aparecimento, enquanto efeito. Não podemos, portanto, atribuir liberdade à matéria com base na incessante atividade pela qual ela preenche seu espaço, mesmo se essa atividade decorre de um princípio interno. Tampouco podemos encontrar qualquer conceito de liberdade adequado a um ser puramente inteligível como Deus, na medida em que sua ação é imanente. Pois sua ação, embora independente de causas que a determinem do exterior, está não obstante determinada em sua eterna razão, portanto, na natureza divina. Só quando algo deve começar por meio de uma ação, e portanto, o efeito encontrar-se na série temporal e, por conseguinte, no mundo sensível, é que surge a questão de se a causalidade deve, ela própria, também ter um começo, ou se a causa pode originar um efeito sem que sua própria causalidade tenha um começo. No primeiro caso, o conceito dessa causalidade é um conceito dessa necessidade natural, no segundo, da liberdade. (Kant, 2014, § 53).
A partir da origem dos conceitos de causalidade, verifica-se que um decorre de uma necessidade natural e outro da liberdade dos seres dotados de razão, o que faz levantar a ideia de dois mundos, o mundo das coisas que conhecemos por meio dos fenômenos e o mundo das coisas-em-si. Fenômeno é o objeto de experiência possível, aquilo que aparece por meio dos sentidos por meio das intuições. A palavra fenômeno significa aquilo que é apresentado ou se oferece. No entanto, as coisas quando aparecem ao sujeito podem ser deformadas, as coisas, na realidade, não aparecem como são em si, pois fazem parte do noumenon, o mundo das coisas-em-si. Pensamos as coisas como elas aparecem, mas, como afirma Kant, não conseguimos diferenciá-las do objeto universal, a priori.
Assim, nós pensamos algo em geral e o determinamos de maneira sensível, mas não diferenciamos o objeto universal, representado in abstracto, desse modo de intui-lo; resta-nos então um modo de determina-lo, por meio do pensamento apenas, que embora seja uma mera forma lógica sem conteúdo, parece-nos ser um modo de o objeto existir em si, sem levar em conta a intuição que é limitada aos nossos sentidos. (CRP B346).
Assim, não existe liberdade no mundo fenomênico, essa só é encontrada na coisa em si ou no noumenon, pois no mundo da natureza (fenomênico) não existe liberdade para que um fato ocorra ou não. Se solto um objeto em queda livre, não existirá a opção desse objeto não cair em decorrência da força da gravidade. É o que Kant prova em sua Terceira Antinomia.
Dessa forma, não existe liberdade no mundo fenomênico, que é o mundo sensível de causas e efeitos, a possibilidade de o indivíduo agir com liberdade somente será possível no mundo numênico, que é o mundo da moral. O mundo no qual não estar-se-á preso aos desejos e inclinações em que o ser humano terá liberdade para agir segundo a sua vontade, boa vontade, para fazer aquilo que é certo segundo a sua própria consciência. Höffe distingue bem esses termos ao afirmar que ?o conhecimento sensível das coisas tal como aparecem (phaenomena) e o conhecimento inteligível das coisas tal como são (noumena). Será o objeto pensado, que caracteriza a liberdade do pensar, do agir. Enquanto seres da natureza (fenômeno), o homem não tem como burlar essas leis, as pessoas não têm liberdade no agir; somente se tem liberdade no mundo numênico. Portanto, não Revista Outras Palavras, volume 13, número 1, ano 2017, p.39existe liberdade no mundo fenomênico. Ou seja, no mundo de causa e efeito, não se tem liberdade para agir. A liberdade de ação só é possível no mundo numênico, exatamente por conta da autonomia das pessoas de auto legislar-se.
A liberdade possui um imprescindível papel na autonomia da vontade como caracterizadora da moral. Kant estabelece, no início da Terceira Seção da Fundamentação que o conceito da liberdade é a chave da explicação da autonomia da vontade. (FMC, AK446). Pois a liberdade para se exercer a vontade decorre da autonomia, ou seja, na propriedade que o querer tem de ser para si mesmo sua lei. (FMC, AK446).
Um dos aspectos interessantes da moral kantiana é a sua oposição em relação à ética utilitarista de Jeremy Bentham, pois, conforme essa doutrina uma ação será moralmente válida conforme seu resultado e não conforme a intenção como a ética kantiana. A doutrina de Bentham defende que a moralidade de nossas ações valerão pelas consequências sem levar em conta a intenção da conduta. Assim se uma determinada conduta que visasse o mal, ao desviar-se do controle do agente, tivesse boas consequências, ela seria considerada como uma ação moralmente boa, o que para Kant seria um absurdo pois a qualidade de uma boa ação está em fazê-la por dever e não conforme o dever, esse é o motivo de afirmaru0002se que Kant é intuicionista e a doutrina, utilitarismo, de Bentham é chamada de consequencialistas. O lema da doutrina utilitarista é o de diminuir a dor e aumentar o prazer que deveria trazer a felicidade para o maior número de pessoas. Para o Kant, moral é fazer o certo porque é certo, não porque deve ser feito. Uma ação realizada com o propósito de prejudicar alguém não será considerada como moralmente boa, mesmo na ocorrência de resultados benéficos. Ao privilegiar as consequências em detrimento dos motivos, o utilitarismo não leva em conta a racionalidade das decisões e coloca os desejos acima da vontade, não levando em conta a autonomia do agente em praticar uma ação racionalmente direcionada para o bem. É o próprio Bentham que define o utilitarismo
Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover ou a comprometer a referida felicidade. [...] isto vale não somente para qualquer ação de um indivíduo particular, mas também de qualquer ato ou medida de governo [...]. Ou, em outros termos, o princípio da utilidade é explicado da seguinte forma; [...] O princípio que estabelece a maior felicidade de todos aqueles cujo interesse está em jogo, como sendo a justa e adequada finalidade da ação humana, e até a única finalidade justa, adequada e universalmente desejável; da ação humana, digo, em qualquer situação ou estado de vida [...]. (Bentham, 1973, p. 10).
Kant não concorda com a afirmação de que a felicidade seria como um princípio moral pois a ?A moralidade é incondicional e válida de modo estritamenteuniversal, mas a felicidade, como contentamento com o todo da existência, depende da constituição (individual, social e genérica) do sujeito?. (Höffe, p. 218).
2. Autonomia
A importância do estudo da Autonomia está em que ela é a origem da moral. Como bem elucida Höffe ?a origem da moral encontra-se na autonomia, na auto legislação da vontade?. (Höffe, p. 184). Dessa forma, percebe-se que o comportamento moral está vinculado a vontade do agente em agir de certa maneira e não de outra. Ou seja, pode-se até fazer uma ação direcionada para o bem, mas se essa ação teve como origem um objetivo externo direcionando o comportamento, aí não se terá um comportamento ético, esse somente existirá quando tal comportamento partir da vontade autônoma do indivíduo. Autonomia, nesse aspecto, designa uma liberdade. Liberdade essa que somente é possível no mundo numênico, haja vista que no mundo fenomênico não existe liberdade, pois estamos à mercê das leis da natureza. O comportamento quando não é autônomo, diz se tratar de uma heteronomia, que é aquela conduta motivada por algo externo, como por exemplo uma lei. Este agir deve ser isento de qualquer interesse, de forma a ser considerada uma lei universal, como bem elucida Kant:
Via-se o homem ligado a leis por seu dever, mas não passava pela cabeça de ninguém que ele estaria submetido apenas à sua legislação própria, embora universal, e que ele só estaria obrigado a agir em conformidade com sua vontade própria, mas legislando universalmente segundo o seu fim natural. Pois, se ele era pensado tão somente como submetido a uma lei (qualquer que seja), então esta tinha de trazer consigo um interesse qualquer como atrativo ou coerção, porque ela não se originava como lei da sua vontade, mas esta era sim, necessidade em conformidade com a lei por alguma outra coisa a agir de certa maneira. (FMC Ak 433).
Adiante, Kant arremata ao concluir que ?A autonomia, portanto, é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional?. (FMC Ak 436).
Assim, para Kant, a autonomia da vontade é elemento essencial para a moralidade. A moralidade, portanto, é a relação das ações com a autonomia da vontade, isto é, com a legislação universal possível. (FMC Ak 439).
Kant defende a ideia de que a autonomia da vontade é o princípio supremo da moralidade e que, diversamente, a heteronomia da vontade seria a fonte de todos os princípios ilegítimos da moralidade, haja vista, que, nesse segundo caso, o indivíduo age como se estivesse premido por uma força que o levasse em certa direção masque, na maioria das vezes, seria contra sua vontade. Na autonomia, temos o que Kant chama de ?agir por dever?, e na heteronomia, às vezes apenas age-se ?conforme o deve o dever?; e muitas vezes agimos conforme o dever apenas para não sermos prejudicados e que, se pudéssemos, agiríamos diferentemente. A ideia do Kant é que somente seremos moralmente éticos quando agirmos por dever, ainda que isso nos traga prejuízos. E para que uma ação seja concretizada, mesmo havendo prejuízos, só por meio de uma ordem que nos obrigasse para tal comportamento, é aí que entra a figura do imperativo categórico kantiano.
3. Imperativo Categórico
Imperar significa determinar, governar, comandar, o que leva à ideia de imperativo como aquilo que se impõe como se fora um dever. Esse é o sentido do termo ?imperativo? de Kant, aquilo que nos comanda para uma ação, ação essa que pode ou não ter um objetivo. Por categórico entende-se aquilo que não dá margens à discussão ou condição. Assim, o imperativo categórico impõe regras de condutas, que são princípios, regras gerais, orientadoras de comportamento. Regras práticas podem ser de duas formas: máximas ou imperativos. As máximas não ordenam, são apenas regras subjetivas de conduta sem qualquer conteúdo valorativo e que, por serem subjetivas, ?são diversas de indivíduo a indivíduo? (Höffe, p. 203), mas não são universais o que, consequentemente, não podem ser aplicadas como regra moral. No entanto, os imperativos são mandamentos ou deveres objetivos que valem contra todos, por isso universalmente válidos.
Kant entende por máximas as proposições fundamentais subjetivas do agir que contém uma determinação universal da vontade e dependem de diversas regras práticas. (Höffe, p. 203).
Não obstante, esses imperativos sejam ordenamentos, eles podem ser condicionados, caso em que valerão apenas para alcançar determinados objetivos, o que não os tornariam universal, não tendo aplicação na prática moral. Assim, caso haja um objetivo como condição da minha ação, esse imperativo será tido como hipotético, haja vista depender de uma finalidade que a pessoa deseja alcançar; por exemplo: se quiseres ter um bom emprego, estuda com afinco; se quiseres emagrecer, pratica uma atividade física.
No entanto, não é esse tipo de imperativo que interessa à moral kantiana, o imperativo deve ser aquele que se afaste de qualquer direcionamento dos desejos e inclinações, é agir conforme a razão e sem qualquer influência externa, é ter um comportamento racional, a priori, que determine o agir sem qualquer interesse, é agir, não conforme um dever, mas pelo dever. Assim esse imperativo não deve relacionar-se com qualquer intenção, deve ser absoluto, categórico, claro e definido isento de qualquer pretensão. A vontade direcionada para um agir moral tem a obrigação de afastar a razão empiricamente condicionada.
Ora, todos os imperativos mandam ou hipotética ou categoricamente. Aqueles representam a necessidade prática de uma ação como meio para conseguir uma outra coisa que se quer (ou pelo menos que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que representaria uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem referência a um outro fim. (FMC Ak 414).
Os imperativos hipotéticos, por serem condicionais, não servem para a caracterização de um comportamento moral, pois que seu objetivo situa-se fora da pessoa, que age incentivada por um desejo e não pela vontade racional e universal necessariamente aceita por todos.
Como saber se o comportamento é o correto? Por meio de Imperativos Categóricos:
?Age de tal forma que a tua máxima valha como lei universal?.
Imperativo Categórico é uma regra básica que tem origem na pessoa.
É colocar as pessoas como fim, e não como meio.
O Imperativo Categórico deve ser seguido, mas de maneira autônoma, com liberdade. A razão vai determinar o que é melhor para se fazer.
Segundo Kant, o Imperativo Categórico é uma verdade universal.
Assim, quando os sujeito age conforme os preceitos da moral kantiana, a consequência é uma paz social mais garantida, haja vista que o seu comportamento será o mesmo em todas as situações; pois quando o sujeito sabe que não está sob a vigilância do estado ela agiria contrariamente à lei, pois não sofreria qualquer punição, mas se esse sujeito age de acordo com os preceitos morais, ele terá uma constância de comportamento.
Uma vontade perfeitamente boa, portanto, estaria do mesmo modo sob leis objetivas (do bem), mas nem por isso poderá ser representada como necessidade a ações conforme à lei, porque ela, por si mesma, em razão de sua qualidade subjetiva, só pode ser determinada pela representação do bem. (FMC Ak 414).
Assim, percebe-se que é o Imperativo Categórico que determina um comportamento moral pois, como afirmado pelo próprio Kant,
só o imperativo categórico tem o teor de uma lei prática, todos os outros podendo se chamar, é verdade, princípios da vontade, mas não leis, porque o que é necessário tão somente para se realizar uma intenção qualquer a nosso bel-prazer pode ser considerado em si como contingente e porque podemos nos livrar a qualquer momento do preceito se abrirmos mão da intenção, ao passo que o mandamento incondicional não admite qualquer bel-prazer com respeito ao contrário, por conseguinte é o único que traz consigo aquela necessidade que se requer para uma lei. (Kant, p. 50).
Portanto, o importante não é o que eu quero, mas como devo proceder, e esse proceder tem de ser pela lei. Ou seja, se meu comportamento é conforme o dever não significa que estou agindo moralmente, o que importa é agir pelo dever, é a minha intenção que deve impor as regras de meu comportamento, a priori,independentemente de qualquer condição empiricamente estabelecida.
Essas regras que ordenam, tidas como os Imperativos Categóricos são elaboradas por Kant por meio de três formulas diferentes:
Age apenas segundo a máxima pela qual possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal; (FMC Ak 421).
Age como se a máxima de tua ação devesse se tornar por tua vontade umalei universal da natureza; (FMC Ak 421).
Age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer meramente como meio outro, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio. (FMC Ak 429).
É importante ressaltar que, conforme Rawls, existe apenas um imperativo categórico, é apenas as formulações que são diferenciadas. (Rawls, p. 209).
Do exposto, conclui-se que o imperativo categórico é o elemento essencial da ética kantiana na medida em que este determina o comportamento do indivíduo por meio de uma boa vontade nascida da razão, sem qualquer influência empírica. Por ser um comportamento racional possui validade universal e é estritamente necessário ao indivíduo que tem em mente a concreção de um mundo bem melhor.
O Fato da Razão
Alguns comentadores kantiano afirmam que Kant não conseguiu deduzir a moral na FMC, o que fez com que Kant criasse o artifício do Fato da Razão que serve também como prova de que a razão pura determina nossa vontade por meio da liberdade do agir. Em Kant, o Fato da Razão diz respeito a existência ou não da moral, se ela só existe no imaginário ou se existe no mundo real, é ?uma autorreflexão da razão prática e de sua consumação na dimensão do moral?. (Höffe, 2005, p. 223). Ou seja, o Fato da Razão é a consciência da lei moral e não a lei em si. Surgiu, o Fato da Razão, de uma necessidade em se provar a existência da lei moral pois, conforme Höffe, ?As três peças da teoria, a ideia do simplesmente bom, o imperativo categórico e o princípio da autonomia, são elementos necessários mas não suficientes de uma ética filosófica?. (Höffe, p. 222). Faltava algo mais, e esse algo era a consciência de que a lei moral seria prática
A validade objetiva da lei moral não pode ser realizada por meio de uma dedução, a exemplo do que ocorre com as proposições fundamentais do entendimento teórico puro pois, conforme Kant:
Com a dedução da lei moral não posso, porém, tomar um tal caminho. Pois não se trata do conhecimento da natureza dos objetos, que de qualquer modo podem ser dados alhures à razão, mas de um conhecimento na medida em que ele pode ser o fundamento da experiência dos próprios objetos e na medida em que a razão, através da mesma, possui causalidade de um ente racional, isto é, se trata da razão pura que pode ser considerada uma faculdade que determina imediatamente a vontade. (Kant, 2002, p. 157).
[...] a realidade objetiva da lei moral não pode ser provada por nenhuma dedução, por nenhum esforço da razão teórica, especulativa ou empiricamente apoiada, e, pois, ainda que se quisesse renunciar a certeza apodíctica, nem ser confirmada pela experiência e deste modo ser provada a posteriori e, contudo, é por si mesma certa. (Kant, 2002, p. 157)
A Crítica da Razão Pura (CRP) tem como um de seus objetivos o conhecimento dos objetos, ao passo que, na Crítica da Razão Prática (CRPr) nós criamos os objetos, objetos da moral. O Fato da Razão está há muito tempo incorporado à essência de todos os homens.
A tese do Fato da Razão é o terceiro elemento na doutrina da moralidade em Kant: 1) no capítulo das antinomias da primeira Crítica, Kant demonstrou que a liberdade transcendental é pensável, quando tratou da terceira antinomia; 2) o princípio da autonomia da segunda Crítica mostra que a liberdade transcendental é um conceito negativo, que visto positivamente contém a liberdade moral; 3) o Fato da Razão prova que a liberdade transcendental é efetiva. (Höffe, p. 226).
A moralidade, para Kant, é fundamentada em uma razão pura, isenta de qualquer influência empírica, ou seja, livre de todos os costumes, pois um comportamento moral não pode decorrer da experiência, haja vista que a moral, nessa situação, não teria o caráter de universal e necessário. Universal por ter que dizer respeito a todas as pessoas e necessário pelo fato de sempre ter que estar presente. Somente a partir de uma razão prática a priori, poderíamos ter uma lei moral válida para todos os lugares e tempo. Verificaremos, também, conforme Kant, sobre a boa vontade que é imprescindível ao conceito de dever, o ?conceito do dever contém o de uma vontade boa?. O conceito de Imperativo Categórico é a própria lei moral e não contém qualquer conteúdo, apenas a forma é essencial, ou a intenção de como são realizadas as ações. Assim, na Crítica da Razão Prática, Kant quer tornar a moralidade consciente para o agente por um ?Fato da Razão?, ou seja, quer que lei moral seja manifestada em nosso consciente como um fato, de maneira a indicar ao ser que age que a lei moral existe e que ela é formada por uma auto legislação, uma lei que se impõe ao próprio legislador.
Kant relata um exemplo para mostrar a possibilidade do fato da razão nas pessoas, quando uma pessoa sob ameaça de pena de morte tiver que prestar um falso testemunho:
Supondo que alguém alegue que sua voluptuosa inclinação seja-lhe totalmente irresistível no momento em que o objeto querido e a ocasião correspondente lhe ocorram, perguntar-lhe se, no caso em que se erguesse perante a casa em que ele encontra essa ocasião uma forca para suspendê-lo logo após a gozada volúpia, ele então não dominaria sua inclinação. Não se precisa de muito tempo para adivinhar o que ele responderia. Perguntai-lhe, porém, se, no caso em que seu governante sob ameaça da mesma irradiada pena de morte lhe exigisse prestar um falso testemunho contra um homem honrado, que ele sob pretextos especiosos gostaria de arruinar, se ele então, por maior que possa ser seu amor à vida, considera possível vencê-lo. Se ele o faria ou não, talvez ele não se atreva a assegurá-lo; mas que isso lhe seja possível, tem que admiti-lo sem hesitação. Portanto ele julga que pode algo pelo fato de ter a consciência que o deve, e reconhece em si a liberdade, que do contrário, sem a lei moral, ter-lhe-ia permanecido desconhecida.(Kant, 2002, p. 103, destaquei).
Ou seja, como mostrado na Fundamentação, a moralidade kantiana está relacionada a ideia de liberdade de um ser racional. No entanto, como Kant não pôde deduzir a lei moral na Fundamentação, ele vai em direção à segunda crítica para evidenciar o Fato da Razão como consciência de um ser racional, ou seja, a prova da existência da lei moral. E esse Fato da Razão seria a prova da lei moral que, por sua vez, implicaria a noção de dever imposto pelo Imperativo Categórico.Kant explica que não precisamos de grande perspicácia para saber o que se devefazer, para que a minha vontade seja moralmente boa, pois ?o sujeito humano, como sujeito livre, não pode conceber a lei moral senão como uma regra que pode ou não ser aplicada. (Dekens, p. 87).
Assim, Kant não pretende, na Crítica da Razão Prática, provar a possibilidade da lei moral, eis que a tentativa já tinha se mostrada frustrada na Fundamentação. Apesar de que, segundo Brito, ao comentar a interpretação de Allison acerca do Fato da Razão, Kant diz que a dedução de uma lei moral seria desnecessária e impossível1. A intenção de Kant na segunda crítica é a prova da existência da razão prática com a utilização do Fato da Razão. Dessa forma, além da prova da existência da lei moral, prova-se, também, a liberdade da vontade, eis que a moral é a consequência da autonomia da vontade.
Concluindo, chegamos ao entendimento de que o estudo do Fato da Razão kantiano pretende comprovar a lei moral através da consciência do ser que age, que controla sua ação, que tem discernimento, e é responsável pelas consequências de seus atos. Como explicitou Höffe:
As três peças da teoria, a ideia do simplesmente bom, o imperativo categórico e o princípio da autonomia, são elementos necessários
1 This interpretation corresponds to Kant?s position that a deduction of the moral law is not only unnecessary, but impossible.
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mas não suficientes de uma ética filosófica. Sem a prova de que o objeto comum das três peças da teoria, a moralidade, efetivamente existe, Kant não alcança sua meta, a superação de ceticismo ético. Este só se deixa refutar a partir do momento em que a moralidade em última análise não depender de ilusões pessoais, específicas de grupos, epocais ou específicas de gêneros, mas se prova como efetivamente existente, como um factum. (Höffe, 2005, p.222, destaquei).
Para Rawls, o Imperativo Categórico deve satisfazer a quatro condições, entre as quais o Fato da Razão faz parte da terceira condição, (Rawls, p. 292)
1. Primeira Condição, Condição de Conteúdo: Não deve ser meramente formal, mas deve ter estrutura suficiente para especificar exigências sobre a deliberação moral, de modo que uma quantidade adequada de máximas se mostrem próprias ou impróprias para se tornarem leis universais;
2. Segunda Condição, Condição de Liberdade: Deve apresentar a lei moral como um princípio de autonomia, de maneira que, a partir da nossa consciência dessa lei como supremamente obrigatória para nós (pessoas razoáveis), nos seja possível reconhecer que podemos agir segundo o princípio da autonomia como um princípio da razão;
3. Condição do Fato da Razão: Nossa consciência da lei moral como supremamente obrigatória para nós, pessoas razoáveis e racionais, deve ser encontrada em nosso pensamento, sentimento e juízo morais cotidianos; e a lei moral deve ser ao menos implicitamente reconhecida como tal pela razão humana comum;
4. Condição de Motivação: nossa consciência da lei moral como supremamente obrigatória para nós deve ser tão profundamente enraizada em nossa pessoa como razoável e racional, que essa lei por si mesma, quando plenamente conhecida e compreendida, possa ser um motivo suficiente para agirmos segundo ela, sejam quais forem nossos desejos naturais.
Vimos então, que o importante é a concretização da moralidade na mente do sujeito, ou seja, a certeza da existência da lei moral, e é isso que Kant tenta provar por meio do Fato da Razão estudado em sua segunda crítica. A impossibilidade de se provar a existência da lei moral jogaria por terra todas essas preocupações com o estudo da ética e da moral.
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Referências Bibliográficas
Bentham, Jeremy. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
Brito, Adriano Naves de. Will, Value, and the Fact of Reason. Paper written with the financial support of the CNPQ.
Caygill, Howard. Dicionário de Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
Dekens, Olivier. Compreender Kant, 2ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
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